Este artigo foi publicado originalmente na Revista Ciência & Ambiente 37, páginas 5-12, 2008.
“…o carro tornou a cidade grande inabitável. Tornou-a fedorenta , barulhenta asfixiante, empoeirada, congestionada, tão congestionada que ninguém mais quer sair de tardinha.”
André Gorz
O automóvel conformou as cidades e definiu, ou pelo menos foi o mais forte elemento a influenciar, o modo de vida urbano na era da industrialização. Daquilo que era inicialmente uma opção – para os mais ricos evidentemente – o automóvel passou a ser uma necessidade de todos . E como necessidade que envolve todos os habitantes da cidade ele não matou apenas a cidade mas a si próprio. Sair da cidade, fugir do tráfego, da poluição e do barulho passou a ser um desejo constante. Em outras palavras, o mais desejável modo de transporte, aquele que admite a liberdade individual de ir a qualquer lugar em qualquer momento, desde que haja infra-estrutura rodoviária para essa viagem, funciona apenas quando essa liberdade é restrita a alguns. Quando tal possibilidade passa a ser “democratizada”, a partir das ações pioneiras de Henry Ford que incorporou seus operários no mercado desse bem, ela mostra-se inviável pelos congestionamentos, além de insustentável. A aparente liberdade, mobilidade para todos com independência de trilhos e horários, uma verdadeira utopia, prometida aos trabalhadores como parte do acordo entre capital e trabalho, firmado pelo Welfare State, quando extensiva a toda a sociedade transformou-se numa prisão. A dependência em relação ao automóvel, acabou se tornando maior do que a dependência dos trens e evidentemente maior do que as viagens feitas a pé ou com tração animal embora envolva viagens mais longas e, apesar do tráfego, mais rápidas. Não há como comprar pão a pé nos subúrbios americanos desenhados em total dependência ao automóvel. Sem o automóvel não há como abastecer uma casa na cidade marcada pela urbanização dispersa: ocupação de vastas áreas com baixa densidade de ocupação onde predomina, no uso do solo, frequentemente de forma absoluta e exclusiva, a moradia e a infra-estrutura rodoviária.
A cidade do fim do século XX se confunde com a região. Se o taylorismo e o fordismo (formas de organização da produção industrial no início e no fim do primeiro quarto de século XX, respectivamente) induziram a uma ocupação urbana mais concentrada, a disseminação do automóvel e o pós fordismo, determinaram uma ocupação dispersa e fragmentada. A robotização, a terceirização, a incorporação do just in time obedecendo a uma nova estratégia logística, a mobilidade do capital que transfere unidades de produção para regiões ou países onde a mão de obra é mais barata e a legislação ambiental menos rigorosa, condenando ao abandono cidades marcadas pela produção fordista (como o caso clássico de Detroit) , todas essas características da chamada globalização levam a uma mudança na ocupação do território.
O capital imobiliário acompanha esse movimento com a oferta dos condomínios fechados e shopping centers no entroncamento de avenidas e rodovias. A segregação e a fragmentação aumentam enquanto é decretada a morte da rua e do pedestre, do pequeno comércio, apesar do alerta feito por Jane Jacobs, ainda na década de 1960. O movimento de saída da cidade é paralelo ao movimento de degradação das áreas centrais urbanas (fenômeno típico da promoção imobiliária capitalista dirigida pela valorização do preço das localizações) apropriada pelos pobres até ser objeto de um projeto fashion de “renovação urbana” que a incorpora novamente ao mercado. David Harvey lembra o movimento de destruição e reconstrução de ambientes construídos como parte do processo de acumulação de capital. A extensão da ocupação do solo urbano por novos condomínios e shoppings centers e a expansão por “recuperação de áreas degradadas” (com a conhecida gentrificação) é uma determinação ilimitada do mercado imobiliário.
Mais recentemente, nas últimas décadas do século XX, os urbanistas incorporaram, além das críticas ao anti-modernismo segregador, as críticas dos ambientalistas que havia sido ignorada nas formulações do Urbanismo Modernista. A impermeabilização do solo causada pela urbanização dispersa que avança horizontalmente sobre todo tipo de território ou uso, a área ocupada e impermeabilizada pelo automóvel nesse modelo de urbanização (estacionamentos, avenidas, amplas rodovias, viadutos, pontes, garagens, túneis) fragmentando e dividindo bairros inteiros, a custosa e predatória poluição do ar se somam ao incrível número de acidentes com mortes ou invalidez, as horas paradas em monumentais engarrafamentos causadoras de stress, enfim o “apocalipse motorizado” é por demais visível e predatório para ser ignorado. Suas conseqüências envolvem desde aspectos subjetivos como a “solidão da abundância” (uma referência ao modelo de consumo que tem no automóvel um item central) até o principal causador de impacto sobre o aquecimento global.
Se essa condição assumida pelas sociedades no mundo todo é tão impressionantemente clara, desumana e ambientalmente predatória porque ela se aprofunda e se reafirma a cada momento? Porque movimentos sociais de ciclistas, pedestres, urbanistas, ambientalistas não ganham repercussão? Porque a industria automobilista continua a ganhar a centralidade da preocupação de governos com prioridade na concessão de subsídios?
A indústria do automóvel não envolve apenas a produção de carros (que inclui a exploração de minérios, a metalurgia, a indústria de auto-peças e os serviços mecânicos de manutenção dos veículos) e as obras de infra-estrutura destinadas à sua circulação. Somente aí nestes processos citados já teríamos o envolvimento de forte movimento econômico e portanto de significativo poder político mas a rede de negócios e interesses em torno do automóvel vai bem mais longe e envolve inclusive o coração da política energética, estratégica para qualquer projeto de poder nacionalista ou imperialista.
Exploração, refinamento e comercialização do petróleo, com as extensas e significativas redes de distribuição são, na verdade, a parte mais importante na disputa pelo poder no mundo. As últimas guerras promovidas pela nação mais poderosa do globo confirmam essa assertiva. O argumento falacioso que justificou a invasão do Iraque pelos Estados Unidos não resistiu até o final do governo Bush. Este presidente foi obrigado e reconhecer que diferentemente do havia anunciado ao mundo não havia armas químicas estocadas no Iraque. As razões da guerra foram outras. Como afirma Harvey:
“O acesso ao petróleo do Oriente Médio é portanto uma questão de segurança crucial para os Estados Unidos bem como para economia global como um todo.” (p29)
Ou na página seguinte:
“Há igualmente um aspecto militar envolvido nessa discussão: os militares são movidos a petróleo.” (p 30)
O capitalismo tem necessidade de expansão ilimitada. É de Karl Marx a demonstração da tese de que não é o consumo que determina a produção mas o inverso, a produção é que determina o consumo no modo de produção capitalista. É preciso consumir para alimentar a produção ou mais exatamente, a acumulação. É preciso, portanto, criar a necessidade do consumo. Produção pela produção e consumo pelo consumo. Uma vasta máquina de propaganda acompanha a indústria do automóvel. A construção de toda uma cultura e um universo simbólico relacionados à ideologia do automóvel ocupa cada poro da existência urbana. Como já admitimos o rumo tomado pelo crescimento das cidades impôs a necessidade do automóvel mas como qualquer outro produto de consumo industrial, e mais do que qualquer outra, ele não escapa ao fetichismo da mercadoria. Ao comprar um automóvel o consumidor não adquire apenas um meio para se locomover mas também masculinidade, potência, aventura, poder, segurança, velocidade, charme, entre outros atributos.
As cidades e o automóvel na periferia do capitalismo
Após reconhecer que o automóvel ocupa um lugar central nas relações de poder entre as nações e após reconhecer ainda sua determinação no crescimento e formato das cidades é preciso verificar como se dá essa relação na periferia do capitalismo já que esta guarda especificidades que a diferencia dos países centrais.
Todos sabemos que as relações entre as nações do mundo são assimétricas. Desde a expansão mercantilista até os tempos atuais, conhecido por globalização, as relações internacionais de dependência se aprofundam. Essa dependência é biunívoca mas não equilibrada , alguns países tem uma posição subordinada e outros de supremacia no quadro de poder internacional. Os poderes hegemônicos impõem, frequentemente pela força mas também pela persuasão, modo de vida, valores, cultura, que acompanham as exigências da expansão dos mercados. Ë importante lembrar entretanto que, se a forma de inserção nas relações internacionais é determinante para uma dada sociedade, há que se levar em conta suas especificidades históricas. No Brasil, de forma bastante semelhante a outros países da América Latina, as cidade e as formas de mobilidade guardam diferenças marcantes em relação aos casos dos países centrais em que pese a mimetização do modo de vida. Essa dominação não se restringe apenas à importação de modelos como é o caso da cidade ou da vida orientada pela matriz automobilística ou ao parque industrial que tem no automóvel seu carro chefe mas também se estende à produção das idéias, ao desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da cultura. Necessidades básicas como o esgoto ou a habitação segura estão ausentes num quadro em que estão presentes eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos e até automóveis. De fato, pesquisa desenvolvida durante muitos anos na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo mostrou a presença de bens industriais modernos (incluindo o automóvel usado) convivendo com a falta de saneamento básico ou mesmo de um banheiro com as mínimas condições técnicas de funcionamento nas favelas da metrópole paulistana. Esse é o quadro de uma industrialização calcada principalmente nas demandas da expansão capitalista internacional e não nas necessidades básicas do mercado interno. As conseqüências da dependência subordinada desde os tempos coloniais foram muito bem exploradas por diversos estudiosos da sociedade brasileira – Caio Prado, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Roberto Schwarz, Francisco de Oliveira entre muitos. Podemos dispensar seu desenvolvimento aqui para nos deter na especificidade da mobilidade urbana, em especial metropolitana, na era da globalização.
Grande parte da cidade brasileira é construída informalmente à margem da legislação urbanística e até da legislação de propriedade. O mercado residencial formal abrange menos da metade da população em nossas metrópoles. O Estado não controla a totalidade do uso e da ocupação do solo e nem oferece alternativas habitacionais legais. Uma parcela da cidade, aquela que se dirige à maior parte da população e evidentemente às parcelas de rendas mais baixas, é resultado da compra e venda de loteamentos ilegais ou simplesmente da invasão de terras. As favelas constituem a forma de moradia de grande parte da população metropolitana. Não se trata de exceção mas de regra. Ao contrário do senso comum a maior parte das favelas não estão nas áreas valorizadas pelo mercado mas na periferia urbana. Até mesmo no Rio de Janeiro as favelas se localizam em sua maciça maioria na zona norte e não na zona sul como muitos pensam. Essas áreas periféricas, onde são localizados também os conjuntos habitacionais de promoção pública, constituem praticamente uma outra cidade: ilegal, informal, invisível ou seja um verdadeiro depósito de gente desprovido de todos os equipamentos e serviços que caracterizam “a cidade”. O transporte é precário obrigando a população a longas jornadas a pé ou ao “exílio na periferia”, ou seja, grande parte da população, especialmente jovens do sexo masculino raramente deixam o bairro que oferece poucas condições para a prática de lazer, esportes ou cultura.
Na cidade do capitalismo periférico a saúde, a previdência, a moradia digna e legal, a mobilidade urbana, são para apenas para alguns mas o modo de vida hegemônico subverte qualquer previsão. Por meio de mercado agressivo e de estratégias de publicidade esses produtos penetram no interior das favelas disseminando até produtos da revolução digital. Algumas transnacionais (especialmente na área de celulares) desenvolveram uma estratégia especial para entrar no mercado das favelas..
Com a globalização, a partir dos anos 1980, o quadro de pobreza e desigualdade se aprofunda na cidade brasileira. A queda do crescimento econômico tem como conseqüência, a queda nos investimentos públicos e privados e o aumento do desemprego. Essa tragédia é acompanhada de outra: a implementação de políticas neo liberais. Sob inspiração do Consenso de Washington, do FMI e do Banco Mundial, o Estado brasileiro implementa o ajuste fiscal, o corte de subsídios nas políticas públicas, a privatização do patrimônio público, a desregulamentação financeira, trabalhista atingindo também os serviços públicos. As conseqüências dos recuos nos investimentos públicos não se fizeram esperar: aumento da violência, aumento exponencial da população moradora em favelas, aumento da população moradora de rua, aumento da infância abandonada, o retorno de epidemias que já estavam erradicadas, entre outras mazelas.
A área de transportes coletivos urbanos foi das mais atingidas. Se a regulação estatal era precária antes de 1980, após o ajuste fiscal a situação piorou. A informalidade ganha uma nova escala com as redes de vans e moto táxis ilegais ocupando os vazios deixados pela ausência do Estado.
Como já foi mencionado, as determinações gerais decorrentes da expansão capitalista internacional não são as únicas a definir o destino da mobilidade urbana em um país como o Brasil onde a desigualdade social está entre as maiores do mundo em que pese que o país figura entre as 10 maiores economias. O Brasil, assim como os demais países do capitalismo periférico, guardadas as diferenças, apresenta especificidades bastante estudadas pelos autores brasileiros citados anteriormente. “Desenvolvimento incompleto ou interrompido”, “capitalismo travado”, “desenvolvimento moderno do atraso”, são conceitos que embora não totalmente satisfatórios tentam explicar as características específicas da sociedade brasileira onde produtos, tecnologias, valores, oriundos nos setores internacionais de ponta convivem com condições atrasadas e pré-modernas. Entre as características presentes em nossa formação social, ganham destaque, na gestão urbana, o clientelismo, o patrimonialismo, a prevalência dos privilégios (esta condição é notável no judiciário), desprestígio do trabalho não intelectual, retórica que contraria a prática, etc. Esta última característica está notavelmente presente nos Planos Diretores: textos detalhistas e bem intencionados convivem com um pragmatismo excessivo na gestão. É por esse motivo que é comum encontrarmos planos sem obras e obras sem planos. Os orçamentos públicos, especialmente municipais privilegiam os investimentos relacionados ao automóvel ou sistema viário mas dificilmente o fazem seguindo o Plano Diretor. Por outro lado, não é pouco freqüente que urbanistas se detenham nas regras de uso e ocupação do solo e ignorem que o grande promotor que orienta a ocupação do solo é o transporte.
A prioridade dada às obras viárias têm relação com os financiamentos das campanhas eleitorais, com a visibilidade notável dos seus produtos mas também se prestam muito ao jogo clientelista. A periferia desurbanizada é uma fonte inesgotável de dependência política que afirma a relação de clientela. O asfalto, especialmente, tem forte apelo eleitoral.
Não é intenção eliminar aqui qualquer perspectiva propositiva ou contribuir com o imobilismo como fazem tantos textos acadêmicos críticos. Sempre há espaço para ação, mesmo na vida profissional e frequentemente, em condições especiais, até mesmo no aparelho de Estado. Aos pesquisadores, entretanto, impõe-se um mergulho profundo e renovador, necessariamente crítico. Este número de Ciência e Ambiente, com o qual tive a satisfação de colaborar oferece análises críticas e propostas para o enfrentamento de um dos maiores problemas ambientais e sociais da humanidade.
Como se instalou entre nós a cultura do “rodoviarismo”, quais foram seus agentes? Como chegamos à tragédia verificada nos acidentes de trânsito sempre atribuído a questões de natureza individual? Qual o peso e o custo do automóvel, da indústria de infra-estrutura e da opção energética para o ambiente e para a saúde dos moradores urbanos? O que pode ser feito para minimizar o impacto dessa “indústria do automóvel” no meio ambiente e para melhorar as condições de mobilidade da maioria da população urbana? O que pode ser feito, na tecnologia do automóvel ou em relação aos combustíveis para diminuir a emissão de gases poluentes? Quais as perspectivas de uma nova política energética? E em relação à cidade, quais modos de transporte ou política de mobilidade e uso do solo podem ser implementadas?
Algumas medidas são mais viáveis e não exigem transformações profundas. Outras propostas exigiriam mudanças significativas para sua implementação. Todas elas são fundamentais para o movimento de negação dessa tragédia anunciada e dimensionada e contribuem para alimentar a consciência social sobre tema tão fundamental.
Ermínia Maricato é professora universitária, pesquisadora acadêmica, ativista política, ocupou cargos públicos na Prefeitura da Cidade de São Paulo, onde foi Secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano (1989-1992) e no Governo Federal, onde foi Secretária Executiva do Ministério das Cidades (2003- 2005) cuja proposta de criação se deu sob sua coordenação.